Patrimônio e paisagismo: João Mendes Ribeiro sobre a reabilitação do Jardim Botânico de Coimbra

Com objetivo de conhecer os arquitetos, os projetos e as histórias por trás da arquitetura portuguesa de referência, Sara Nunes, da produtora de filmes de arquitetura Building Pictures, lançou o podcast No País dos Arquitectos, em que conversa com importantes nomes da arquitetura portuesa contemporânea.

Em seu primeiro episódio, Sara conversou com o arquiteto João Luís Carrilho da Graça sobre seu Terminal de Cruzeiros em Lisboa. Agora, para a segunda entrevista, recebe João Mendes Ribeiro para uma conversa acerca de temas como patrimônio, reuso de antigas estruturas e arquitetura da paisagem, a partir do projeto de reabilitação da estufa do Jardim Botânico de Coimbra, cidade onde o arquiteto mantém seu escritório. Leia a entrevista na íntegra ou ouça o podcast, a seguir.

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Sara Nunes: Bem vindo! Sei que a nossa conversa será boa porque me disseram que para além de generoso, é muito apaixonado pelo que faz. É verdade?

João Mendes Ribeiro: Sim! De facto, fazer arquitectura só se pode fazer quando se está muito estimulado a fazê-la. Ou seja, se se estiver muito envolvido com o próprio projecto. Não há outra maneira de fazer. 

SN: O arquitecto tem uma vasta experiência na reabilitação. O que é que o entusiasma mais na reabilitação?

JMR: Na reabilitação, cada projecto é um projecto porque tem sempre condicionantes diferentes, mas o que me interessa de uma forma muito particular é, por um lado, conhecer a História do edifício, a História do lugar e depois perceber aquilo que se mantém como ideia de projecto porque normalmente é uma extensão da própria preexistência. Habitualmente, a matéria do projecto é o edifício preexistente e, de certa forma, este diálogo e equilíbrio entre o antigo e o novo é sempre um tema particularmente interessante num projecto de reabilitação. 

SN: O arquitecto João Mendes Ribeiro nasceu em Coimbra, tem atelier e dá aulas em Coimbra e tem construído também obra relevante em Coimbra. Tem, por isso, de certeza memórias do Jardim Botânico e da estufa muito antes de ter participado no concurso. Pode partilhar connosco essas memórias?

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Recuperação da Estufa do Jardim Botânico / João Mendes Ribeiro. Image © José Campos

JMR: Sim, o Jardim Botânico era um espaço lúdico, mas fez também parte do meu percurso durante a infância, pois eu atravessava o Jardim Botânico quando ia ter aulas no Alliance Française e achava muito mais interessante passar pelo Jardim Botânico (ainda que tivesse de descer escadas e subir escadas) do que ir simplesmente pela rua. E também quando tinha aulas ao fim-de-semana relacionadas com as práticas artísticas, acabava por fazer esse percurso. Portanto, passar pelo interior do Jardim Botânico era sempre um percurso muito estimulante.

SN: Eu acho interessante porque sempre que vou a Coimbra tenho essa sensação. Ao contrário de alguns jardins que se encontram em algumas cidades em que para ir ao jardim temos realmente de querer ir ao jardim, este jardim em específico funciona como um lugar de atravessamento. Essa era a sensação que eu tinha quando ia a Coimbra e o arquitecto também tinha a mesma experiência. Parece que o jardim faz parte do dia-a-dia da vida de Coimbra, concorda?

JMR: Sim, sim, de alguma forma. Eu tenho o atelier muito perto do Jardim Botânico e, às vezes, quando está bom tempo trabalho lá. (risos)

SN: Muito bem. Isso é um privilégio!

JMR: Sim, é um privilégio. Levo o caderno de esquissos e é um momento de inspiração, de prazer estar naquele lugar. Quando preciso de algum isolamento, ou de algum espaço para pensar nos projectos e até de criar, é um espaço de eleição. Frequento e, muitas vezes, desloco-me lá, exactamente, com essa intenção de ganhar a distância necessária para projectar. 

SN: Parece que é um lugar de refúgio.

JMR: De alguma forma, sim.

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Recuperação da Estufa do Jardim Botânico / João Mendes Ribeiro. Image © José Campos

SN: Perguntava-lhe agora quais os desafios lançados pelo concurso da Universidade de Coimbra, em 2013, para a recuperação da Estufa do Jardim Botânico? E, face ao programa que era pretendido, quais os principais problemas que o edifício levantava?

JMR: O edifício estava profundamente degradado. Não estava abandonado, mas encontrava-se com muitas limitações do ponto de vista do funcionamento. Se por um lado havia problemas que eram associados às patologias do próprio edifício, por outro tínhamos a questão da manutenção e queríamos dar resposta às novas necessidades da própria estufa. Trata-se de uma estufa com fins científicos. Ou seja, está inscrita na Universidade de Coimbra e era importante que, de alguma forma, aproveitássemos a necessidade de transformação ou de recuperação do edifício do ponto de vista das peças a inserir no interior da estufa e fazer uma seleção ou uma renovação dos seus conteúdos. O principal problema, para além da questão da degradação, tinha a ver com a necessidade de fazer uma caiação todos os Invernos. Ou melhor, no início do Verão para que o sol não incidisse directamente no espaço interno. Essa caiação era feita todos os anos e, durante o Inverno, a chuva lavava a caiação. Portanto, entrava algum sol. Era muito perigoso fazer esse trabalho, e tudo isto acabava por levantar algumas questões de segurança no espaço interno porque as vidraças partiam-se com alguma frequência. Estamos a falar de uma estrutura muito delicada sob uma vidraça de 3 mm, que representavam algum perigo. Havia então aqui um problema e começámos precisamente por nos interrogarmos de como é que deveríamos ultrapassar esta questão que é a manutenção da estufa e, simultaneamente, encontrar um dispositivo que filtrasse a luz e o excesso de sol no espaço interno, sobretudo no Verão. 

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Recuperação da Estufa do Jardim Botânico / João Mendes Ribeiro. Image © José Campos

SN: Isso era uma manutenção muito exigente, não era?

JMR: Sim, muito exigente, demorada e delicada. Começámos por esse ponto porque tínhamos de repensar este sistema de sombreamento, muito artesanal e encontrar uma solução alternativa. Aquilo que fizemos foi trabalhar com a Covina – Companhia Vidreira Nacional S.A., no sentido de encontrar um vidro que nos desse outras garantias do ponto de vista da segurança e do ponto de vista térmico também para que assim fosse possível inscrever esse sistema na estrutura preexistente. Nós não queríamos alterar a estrutura original do edifício. A Estufa Grande é dos primeiros exemplos da arquitectura do ferro em Portugal. A sua construção deu-se em 1859 e trata-se de uma estrutura em ferro fundido muito esbelta, muito bem desenhada e, portanto, não queríamos alterar a sua expressão. Fizemos um trabalho de investigação com a Covina, chegámos a um vidro de 7 mm, 3 mm com mais 4 mm com corte térmico e conseguimos inscrever na espessura dos perfis.

Isso levantou um outro problema que é o aumento de peso porque aumentámos cerca de 25 quilos de carga por m2 sob a estrutura. Tivemos, portanto, de fazer ensaios à estrutura e percebemos que esta estava muito bem dimensionada, muito bem desenhada e suportava a carga. Aliás, esta poderia ir até cem quilos por m2 e isso foi fantástico porque veio de alguma forma resolver um problema técnico na questão do sombreamento e do controlo térmico no espaço interno sem que a estrutura original tivesse de ser alterada. Depois havia outros problemas que tinha a ver com a recuperação dos elementos de pedra, a recuperação dos rebocos. Estes já se encontravam muito adulterados. Usámos rebocos tradicionais à base de cal com um pigmento incluído na própria argamassa e esse foi também um trabalho importante porque era relevante que as paredes respirassem e funcionassem como funcionavam no projecto original. Houve depois também a necessidade de encontrar um dispositivo de abertura, de fecho, de controlo térmico e de controlo de humidade que fosse automatizado e que não existia – essa foi eventualmente uma das grandes dificuldades deste trabalho porque apesar de o desenho da estufa manter-se inalterado de acordo com o projecto original, havia uma rede de infraestruturas imensa que tinha a ver com as necessidades técnicas que estão ocultas ou semi-ocultas e que permitem dotar o edifício de condições excelentes para funcionar como estufa tropical. Portanto, esse controlo passa a ser um controlo feito de forma mecânica e com rigor científico. Essa é também uma das grandes impressões nesta obra. Depois fizemos uma alteração, ainda assim maior, na ala central por duas razões. Primeiro porque nos anos 50 foi contruída uma estrutura de betão, uma galeria, incluindo uma escada com acesso à galeria numa quota superior que era muito dissonante do ponto de vista do material e mesmo do ponto de vista das circulações, em relação à estrutura preexistente. Procurámos, de alguma forma, redesenhar essa galeria. Achámos que a galeria era interessante porque o espaço central era um espaço muito vertical e esta possibilidade de habitar uma quota superior e ter uma relação de cima para baixo fazia algum sentido, mas fizemos a partir de uma estrutura muito esbelta que cria uma espécie de réplica dos ritmos e das secções da estrutura original em ferro fundido e que permite uma leitura contínua do espaço no sentido vertical, por um lado, e também no sentido horizontal, por outro. Isto porque as duas escadas que estão inscritas nesse espaço que permite o acesso a essa galeria mergulham num lago. Esse lago que tem a ver com outro tema que é: existia a poente uma estufa construída nos anos 40, que tinha uma relação difícil com o exterior porque era semi-enterrada e difícil de visitar.

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Recuperação da Estufa do Jardim Botânico / João Mendes Ribeiro. Image © José Campos

SN: À parte deste edifício? (só para percebermos melhor)

JMR: Sim, à parte deste edifício, e sobretudo porque era uma estufa feita, não em ferro fundido, mas com carteiras de ferro que se encontravam em muito mau estado e não era recuperável. Por outro lado, a estufa albergava aquilo que era a planta ícone do Jardim Botânico – a Vitória-Régia. Trata-se de um nenúfar gigante que estava inscrito nessa estufa, mas como não era possível recuperar a estufa, propusemos a sua demolição. Portanto, no sítio onde estava implantada a estufa fizemos um tanque embutido externo, uma espécie de negativo que marca a presença da estufa anterior e deslocámos o nenúfar gigante para a ala central da estufa tropical, dando-lhe uma centralidade de acordo com a sua importância. 

E foi nessa altura que resolvemos construir o tal tanque ao centro que permite exactamente plantar o nenúfar gigante. Essa foi a grande alteração. Do ponto de vista espacial mantém-se a estrutura original pelo exterior, no interior há uma demolição das estruturas de betão do século XX dos anos 50 e propõe-se uma estrutura muito ligeira que estabelece um diálogo com este tanque central. 

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Recuperação da Estufa do Jardim Botânico / João Mendes Ribeiro. Image © José Campos

Esta ideia do tanque central, ou melhor a forma como o construímos, é também uma peça embutida no pavimento em cor escura porque queríamos que a água se transformasse num espelho e que, de alguma forma, se prolongasse no espaço, tornando-o mais vertical. E esse acaba por ser o foco do projecto: reforçar esta componente vertical da ala central.

SN: Parece-me que este trabalho exigiu um grande estudo, quer da História, quer na investigação de outros edifícios semelhantes. Fale-nos sobre o trabalho de investigação que este edifício exigiu e o que é que aprenderam ao longo do processo.

JMR: É verdade que este projecto obrigou a essa investigação e estabelecemos comparações com as outras estufas. Nós sabemos que esta estufa (concluídas em 1959) tiveram como referência as estufas de Kew Gardens, em Inglaterra, que tinham sido construídas uns anos antes. Portanto, visitámos um conjunto de estufas, nomeadamente em Madrid, que tinham problemas semelhantes de sombreamento. Após alguma dessa investigação e a partir de gravuras e imagens antigas, chegámos à conclusão que inicialmente a estufa não era caiada, não havia caiação, o que havia era um dispositivo de sombreamento pelo interior. Tinha uns toldos verticais, uns paramentos verticais pelo interior. Portanto, de alguma forma nós recuperámos essa imagem. Na estufa em Madrid que visitámos, colocaram os toldos pelo exterior. Do ponto de vista térmico, é melhor e é mais eficaz, mas altera muito a linguagem do edifício e nós não queríamos isso. 

SN: Sim, alterava completamente a fachada. 

JMR: Sim, alterava a linguagem do edifício. E o que nós queríamos era exactamente o oposto. Ou seja, pretendíamos que prevalecesse o desenho original do edifício. Portanto, a partir dessa imagem original, passámos por várias etapas: colocámos os estores pelo interior, mas também colocámos estores na cobertura, em planos inclinados, que não existiam no projecto original. Desenvolvemos uma solução que permitisse sombrear todo o edifício pelo interior, cobrindo toda a extensão, não só as paredes (os paramentos verticais), mas também a cobertura. Desse ponto de vista fomos um pouco mais longe do que o projecto original. E esse dispositivo de abertura e fecho dos estores é automático em função da luz, da temperatura e da humidade do espaço interno. Automaticamente, os estores abrem e fecham, de acordo com as necessidades internas. Essa é também uma mudança porque não ocorre de forma manual, mas centralizada no rigor científico que se pretende a partir de uma estufa como esta. 

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SN: Sim, aqui o tema da temperatura e da humidade é muito importante para este espaço. O edifício é dotado de uma infraestrutura muito sofisticada. Pode explicar-nos melhor um pouco como é que funciona? Já nos explicou os estores, mas eu sei que o espaço tem outros mecanismos para o controlo de temperatura e de humidade dentro do espaço.

JMR: Tem um sistema de aquecimento a três alas. Na ala poente está a estufa tropical; na ala do meio, que contém o nenúfar, a água é aquecida e é semi-tropical; na ala nascente não existem os requisitos técnicos de uma estufa tropical, por isso há temperaturas diferentes. Portanto, cada ala tem um controlo de humidade e de temperatura de acordo com as plantas que se inscrevem nesse espaço. Para além disso, existe um sistema de aquecimento que pode ser, inclusive, um sistema de aquecimento de água. Isso é feito a partir de caldeiras que funcionam a pellets e que têm a possibilidade de usar os resíduos florestais do próprio Jardim Botânico, sobretudo da mata. O aquecimento é feito por esse sistema de aquecimento. Depois existe um sistema que permite pulverizar o ar para garantir o grau de humidade necessário para as plantas tropicais, que tem um sistema de abertura não só nos paramentos verticais como também na quota mais alta da cobertura feita de forma automática. 

Essas aberturas já existiam antes, mas outrora eram feitas de forma manual, uma a uma. Nós criámos um dispositivo que permite articular todas as aberturas e estão associadas a meios mecânicos, que são controlados de forma a funcionar como um sistema único regulando temperatura e humidade. 

No fundo, são dispositivos que de alguma forma já existiam, nomeadamente o tipo de abertura de janelas é recuperado. A diferença é que todas estas aberturas estão todas associadas, e encontram-se associadas a partir de meios mecânicos, pois abrem-se automaticamente a partir de meios mecânicos. Essa é a absoluta grande diferença.

SN: Numa coisa que antes era feita pelos jardineiros, não é?

JMR: Sim, pelos jardineiros que antes entravam no espaço. Tinham um termómetro na parede, mas era uma coisa muito artesanal e agora é feito com todo o rigor científico. 

SN: Uma coisa que me deixou muito curiosa: para onde é que foram as plantas durante o período de obras?

JMR: Algumas plantas foram recuperadas, as grandes espécies não tiveram possibilidade de serem recuperadas, mas também aproveitou-se essa oportunidade para fazer uma limpeza porque do ponto de vista científico não sou a pessoa mais indicada para falar desta área, mas aquilo que me foi dito é que havia pouco rigor científico. Isto é: encontrar um critério científico para as plantas que se tinham perdido. Portanto, aproveitou-se isso também para se fazer esse trabalho. Mas elas foram recuperadas e as que eram recuperáveis foram colocadas noutra estufa provisoriamente.

SN: O edifício encontra-se a funcionar desde 2018 e tem uma missão não só por um lado de estar ao serviço da investigação da universidade de Coimbra e também o da divulgação e do conhecimento sobre o mundo das plantas. Qual é que tem sido a resposta da população de Coimbra ao edifício e esta nova experiência espacial com as plantas?

JMR: Acho que tem sido muitíssimo positiva. É evidente que a estufa como tem fins científicos tem um controlo de visitas, portanto não pode ser visitado a qualquer hora, por qualquer pessoa. O que se tem feito é organizar visitas e a população tem correspondido a essas visitas. Houve sempre muita procura e é sempre muito interessante entrar dentro do espaço interno. É evidente que agora há uma vantagem porque, como incluímos vidraças transparentes, é sempre possível visualizar a estufa a partir de fora. Portanto, há aqui uma nova leitura da estufa a partir do exterior, mas é muito mais estimulante entrar no espaço interno. Sei que as visitas têm acontecido, a população tem procurado e essa curiosidade por parte da população em conhecer aquele espaço é muito gratificante.

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Recuperação da Estufa do Jardim Botânico / João Mendes Ribeiro. Image © José Campos

SN: Há pouco perguntei-lhe sobre a investigação deste edifício e uma coisa que me surpreendeu na sua resposta foi que o passado parece que os ajudou a dar respostas ao futuro, não é? Fale-nos sobre isso.

JMR: É sempre assim! Noutros projectos aconteceu da mesma maneira e, por exemplo, um outro detalhe que não deixa de ser interessante é que na estufa central, na ala central, nós sentimos a necessidade de fazer uma abertura para norte porque funciona como um eixo nas duas direcções. Esta estufa é muito aberta a sul porque aí há ganhos térmicos. E é uma coisa perfeitamente corrente nesse tipo de estufas, mas achamos que era muito estranho a estufa não ter qualquer abertura para norte. Isto é, não ter qualquer relação física, visual ou de acesso para norte. Portanto aquilo que fizemos foi: a partir da ala central inscrever uma porta que permitisse também uma relação visual ou de acesso a norte e depois desenvolvemos uma escada que criasse uma relação com uma plataforma que se situa um pouco mais acima. E quando avançámos para a obra, descobrimos que a porta estava lá. É sempre um pouco assim. Ou seja, de alguma forma mesmo as ideias que eu julgo que são inovadoras, ou que penso que apontam numa outra direcção, muitas vezes estão no próprio edifício. Portanto, esta capacidade de perceber o lugar, a preexistência é fundamental neste tipo de intervenções porque, de alguma forma, o próprio edifício já dá resposta a essas preocupações, a essas necessidades.

Isso aconteceu em bastantes projectos por isso é que eu digo sempre que a regra vem da preexistência. Neste projecto há claramente uma ideia de reabilitação e restauro, a não ser na ala central que se avança um pouco mais, mas está muito presente a ideia de reabilitar e não introduzir qualquer ruptura desnecessária no ponto de vista da introdução de uma linguagem contemporânea. Aqui a ideia era muito apenas a de resolver questões técnicas de infraestruturas para um melhor funcionamento da estufa. Mas isso é algo que existe sempre, esse é também o projecto contemporâneo. Isto é, mesmo introduzindo infraestruturas técnicas mais ou menos ocultas, elas continuam a fazer parte de um projecto. Ainda assim, esta vontade de potenciar a preexistência, de potenciar aquilo que existe constitui um tema fundamental neste projecto. E, de alguma forma, sempre que se avança com o trabalho de investigação vamos descobrir que as respostas já lá estavam no passado. E isso é muito estimulante porque acabamos por perceber que o nosso papel foca-se muito na relação com o passado e, a partir desse passado, damos uma resposta contemporânea. Parece um paradoxo, mas é muito interessante como é que a partir do passado conseguimos dar resposta a novas necessidades. Como eu referi no princípio desta nossa conversa, isso faz com que este equilíbrio entre antigo e novo, entre a preexistência e a nova Arquitectura se consigam encontrar naquilo que pode ser entendida como uma síntese entre a modernidade e a tradição. Há aqui uma vontade de criar um tempo, que é espesso, que tem muito a ver com o passado e que permite, de alguma forma, uma leitura contemporânea a partir desse passado. No fundo, faz essa síntese entre passado e presente. 

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SN: Ouvi dizer que gosta de jardinagem. Aprendeu coisas novas neste domínio ao construir este edifício? 

JMR: Vai-se sempre aprendendo e, sim, é algo de que gosto muito. Talvez por isso mesmo me tenha também apaixonado por este projecto, por estar a trabalhar com conteúdos que para mim são muitíssimo interessantes e tenho essa relação com os elementos vegetais e com a jardinagem. Para mim, é sempre um prazer regressar ao Jardim Botânico e, em particular, este espaço da estufa. Eu devo dizer que não tenho uma relação muito directa com a Arquitectura Paisagista e com os arquitectos paisagistas, mas muitas vezes recorro ao Jardim Botânico para procurar plantas para projectos.

SN:  Muito bem! Como se fosse o seu inventário, não é?

JMR: Como se fosse um inventário. Portanto, não é uma coisa de agora. É algo pelo qual eu tenho um interesse e muitas vezes procuro as soluções no próprio Jardim Botânico e confronto os arquitectos paisagistas com isso. 

SN: Ao investigar sobre este edifício reparei que no próprio website da Universidade de Coimbra, onde consta a informação sobre este projecto, existem algumas imagens históricas do edifício. E uma coisa que eu achei muito curiosa, arquitecto, é que na altura em que essas fotografias foram tiradas podemos verificar que havia muito menos densidade de árvores e as copas eram muito mais reduzidas e na própria estufa sucedia precisamente o contrário. Aí a densidade de árvores era muito maior, ficando quase com a sensação de que se entra numa floresta dentro da estufa. Já agora convido toda a gente a espreitar porque estas fotos históricas são maravilhosas, não são?

JMR: São! E construir um jardim é um processo fantástico e exige muito tempo! Quando plantamos um jardim precisamos entre 20 a 25 anos para termos, na plenitude, um jardim. E isso é muito interessante porque o Jardim Botânico – para além de estar sempre em mutação e viver em constante transformação (porque é preciso plantar novas árvores e outros aspectos a ter em conta) – alcançou uma plenitude que só foi possível no decorrer de muitos anos de crescimento e de manutenção. Curiosamente, a última vez que visitei a estufa há cerca de meio ano, eu próprio fiquei impressionado com o crescimento das plantas, sobretudo da estufa tropical. Isto porque elas foram plantadas muito pequenas e passados dois ou três anos tudo se transformou. É muito orgânico e é muito interessante porque isso acontece também muito com os projectos de arquitectura. Isto é, como gosto muito de plantas e de árvores, quando isso é permitido muitas vezes, proponho que haja esses elementos. Há, inclusive, um processo muito curioso que acontece quando verificamos que a Arquitectura vai envelhecendo e vai ganhando patine. E espero que envelheça bem! Nem sempre isso acontece, mas espero que envelheça bem! E outra coisa que se nota é que a grande transformação acontece nos elementos vegetais porque vão crescendo, vão tomando forma e vão ocupando espaço. Para mim é muito estimulante perceber essa relação.

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SN: Essa transformação...

JMR: Sim, essa transformação porque, por um lado, temos o envelhecimento da arquitectura e, por outro, temos o crescimento de elementos vegetais. E depois existe, sobretudo, a forma como esses elementos transformam o espaço. Esse diálogo entre aquilo que é construído e não construído por elementos orgânicos sempre em mutação. Para mim, é muito interessante e fico surpreendido por visitar este espaço e ver essa transformação dos elementos vegetais que altera também muito as relações de espaço, sobretudo ao nível das relações com o próprio edifício. 

SN: Sim, nesta estufa deve ser ainda mais marcante, não é?

JMR: Sim, aqui é muito mais potenciado porque o grau de crescimento é muito superior, sobretudo na estufa tropical e depois aquilo tem um ambiente, uma atmosfera que é particularmente interessante. É quase um cenário. Eu diria que é uma atmosfera muito artificial, que nos remete para um espaço artificial, mas ao mesmo tempo fascinante. 

SN: Uma oportunidade quase de viajar para outros ambientes, não é?

JMR: Sim, sim, é isso!

SN: Pergunto agora o que este projecto lhe ensinou sobre a missão da Arquitectura.

JMR: Neste projecto aquilo que eu, eventualmente, considero mais interessante é esta ideia de não querer deixar uma marca. Isto é, por outras palavras, as pessoas quando visitam aquele espaço acham que é um mesmo espaço, quando na verdade muita coisa se alterou.

SN: Muito bem! Isso é um elogio?

JMR: É um elogio porque não se percebe qual é o gesto novo. Claro que quem conhece muito bem o edifício sabe, mas as pessoas que o visitam questionam: “Isto já cá estava, não estava?”, e eu respondo que não estava, mas foi muito redesenhado a partir do original. É uma extensão da preexistência, há uma fusão de tempos e penso que isso é aquilo que mais me agrada neste trabalho porque não há uma marca do arquitecto de forma a que o edifício histórico seja o tema central do projecto. 

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A transcrição da entrevista foi disponibilizada por Sara Nunes e segue o antigo acordo ortográfico de Portugal.

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Sobre este autor
Cita: Romullo Baratto. "Patrimônio e paisagismo: João Mendes Ribeiro sobre a reabilitação do Jardim Botânico de Coimbra" 19 Abr 2021. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/960217/patrimonio-e-paisagismo-joao-mendes-ribeiro-sobre-a-reabilitacao-do-jardim-botanico-de-coimbra> ISSN 0719-8906

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